Aprofundamento
2010, Parque Lage, Rio de Janeiro, RJ
(RE)construção (DES)construção do real
As relações entre a fotografia e a realidade sempre foram implícitas. Se inicialmente a fotografia era considerada como um “duplo” do real, seguiu-se nova etapa em que ela afirma as suas qualidades estéticas específicas. Neste processo, contudo, a realidade irá permear as inúmeras poéticas que surgirão desde o início do século XX. Mesmo nas fotografias aparentemente abstratas de Raul Haussmann, por exemplo, a realidade constitui-se como elemento gerador e formador do olhar. Com as suas melanografias, o fotógrafo parte de elementos reais como a cadeira, a palha, o cesto etc., criando uma situação cênica ‘abstrata’ através de formas, sombras e luzes, que num primeiro olhar em nada se parece com o repertório das imagens reconhecíveis. Haussmann cria uma composição em que elementos reais combinados transformam-se num composto plástico potencial e complexo, à medida que, luz e sombra estabelecem uma trama de projeção que se inscreve, enquanto imagem, num plano abstrato. De outro modo, as suas fotomontagens – reconstrução da imagem através de fragmentos fotográficos – lembram a realidade por nós conhecida sem que o seja. Tais procedimentos estéticos, dentre tantos outros experimentados desde o surgimento da fotografia, revelam a vontade de reflexão sobre o real.
Nas fotografias que Maria Tuca apresenta nesta mostra – Perda e Permanência, Instante Decisivo e Pre Crash – a técnica da montagem revela-se sem pudor. Claro está que a montagem, aqui, dilui-se na imagem-realidade, tendo em vista o uso das novas tecnologias. Não existe propriamente a vontade de engano do olhar, senão, a construção de uma situação visual absurda que, de algum modo, colabora na percepção mais atenta da realidade. Em Perda e Permanência, não fosse a presença das mesmas manchas dos tijolos em torno da porta, seríamos levados a crer tratar-se de um recorte de uma arquitetura qualquer. Contudo, o confronto de situações díspares (ser e não-ser, presença e ausência, permanência e impermanência) oferece uma espécie de totalidade da realidade. Em Instante Decisivo, a presença central de uma árvore parece intermediar duas temporalidades. Como metáfora, revela o tempo como passagem a partir das nossas decisões. Tal qual uma película cinematográfica os acontecimentos e as ações inscrevem-se, simultaneamente, num mesmo recorte visual em devir. Em Pre Crash, a imagem construída pela artista coloca em suspenso a eminência de um acidente. As imagens distorcidas pela captura fotográfica de dois veículos em alta velocidade colaboram na conclusão do desfecho da cena. Contudo, nada aconteceu, nem acontecerá, tendo em vista que as três fotografias juntas apontam o caráter fictício da montagem. Em comum, as três imagens fotográficas apontam a dissolução do sujeito no mundo: na primeira, pela solidão; na segunda, pela união, cuja simbiose matrimonial rompe com o sujeito-indivíduo; e, finalmente, na terceira, pelo impacto que indica o seu próprio desaparecimento.
Na fotografia Tempo, quarenta imagens seqüenciais revelam o percurso de um dirigível atravessando nuvens. Neste caso, Tuca não utiliza a técnica da montagem, entretanto, o caráter segmentado da ação (tal qual frames) confere um sentido construtor, em que cada imagem é conseqüência da anterior e prenúncio da próxima. Comparadas entre si, são imagens quase idênticas, não fosse aquele quase imperceptível dirigível que atravessa e transforma cada imagem.
Na sua obra Pássacos, dois vídeos em looping confrontam-se. Ambos focam uma árvore. Numa existe a presença de pássaros com o céu ao fundo; noutra a presença de um saco preso ao vento com uma arquitetura de tijolos ao fundo. A relação entre ‘vôo do pássaro/céu/liberdade’ é contraposta a ‘saco preso nos galhos/parede de tijolos/prisão’. O modo como a obra se constitui faz par com as demais obras citadas, uma vez que, novamente, existe uma (re)construção da realidade.
Colabora na ambigüidade das imagens da artista (reais? irreais?) as possibilidades das novas tecnologias. Visualmente parecem reais. Racionalmente são inverídicas. A manipulação da realidade, empreendida por Maria Tuca, através da técnica da colagem-montagem, acaba por imprimir sentido re-construtor e/ou des-construtor revelando sua poética fundada na vontade de redefinir a tão saturada realidade.
Zalinda Cartaxo